Em um mundo cada vez mais materialista onde há uma supervalorização
do corpo, as pessoas estão muito mais voltadas para a
aparência do que para a essência.
O Brasil hoje é o segundo país com o maior número de cirurgias estéticas
ficando atrás apenas dos Estados Unidos. Aqui torna-se cada vez
mais comum a correção de pequenas “falhas” que mesmo
não sendo vistas ou notadas por outras pessoas,
tornam-se necessidades cada vez mais prementes na vida de jovens,
e até de pré-adolescentes.
Qual é a visão judaica sobre Cirurgia Plástica e em que casos
seria ou não permitida?
Há dois tipos de cirurgia estética: a cirurgia plástica estética e a cirurgia plástica repadora ou reconstrutora, como a realizada na França, conhecida como a primeira cirurgia/transplante de face realizada no mundo.
A primeira é uma opção para quem deseja melhorar a aparência como a lipo-aspiração, lipo-escultura, rinoplastia, etc, enquanto que a reparadora é realizada para corrigir ou atenuar algum “defeito”, seja de nascimento ou provocado por algum acidente.
Em ambos os casos a análise judaica aborda o âmbito subjetivo da pessoa, levando em conta seus sentimentos, sua auto-estima e a motivação que a leva a realizar uma intervenção cirúrgica, e a avaliação dos benefícios ou não que estas mudanças, às vezes tênues, outras radicais, poderão trazer em sua vida.
As informações que seguem abaixo são de autoria do Dr. Daniel Eisenberg do Departamento de Radiologia do Centro Médico Albert Einstein na Filadélfia. Professor Assistente de Diagnóstico por Imagem na Escola de Medicina da Universidade Thomas Jefferson. Leciona Ética Médica há 15 anos.
Cirurgia plástica na História
As mais antigas descrições de cirurgia plástica remontam aos textos em sânscrito com 2600 anos, e antigos papiros egípcios. Estes documentos descrevem reconstruções de nariz, orelha e lábio utilizando abas cirúrgicas e enxertos. Apesar disso, o termo "cirurgia plástica" para descrever a cirurgia reconstrutora somente foi introduzido em 1818.
Antes do Século Dezenove, toda cirurgia era limitada pela incapacidade de aliviar adequadamente a dor da cirurgia em si e pela alta taxa de mortalidade da cirurgia em geral. Nenhuma responsa foi escrita sobre cirurgia cosmética até a segunda metade do Século Vinte. Isso tudo mudou devido aos importantes avanços na segunda metade do Século Dezenove. Trabalhando sobre a obra de Ignaz Philipp Semmelweis (que argumentou que a lavagem das mãos diminuiria as infecções hospitalares) e de Luiz Pasteur (que provou que as bactérias provocam infecção), Joseph Lister introduziu o conceito da cirurgia antisséptica no final do Século Dezenove, diminuindo significativamente o risco de infecção cirúrgica. O éter, a primeira forma de anestesia geral, foi utilizado publicamente pela primeira vez em 16 de outubro de 1846, numa sala de operações no Massachussetts General Hospital, introduzindo a era da anestesia moderna.
Com estas conquistas veio um rápido progresso nas técnicas cirúrgicas, e avanços tanto na cirurgia reconstrutora como na cosmética, especialmente entre a primeira e a segunda guerras mundiais.
À medida que a cirurgia plástica se desenvolvia e as opções cresciam, começou a discussão haláchica formal. Em 1961, Rabino Immanuel Jakobovitz, considerado por muitos como o pai da ética médica judaica, dirigiu-se à Sociedade Americana de Cirurgia Plástica facial num simpósio intitulado "Opiniões Religiosas sobre Cirurgia Cosmética." Rabino Jacobovits, mais tarde Rabino Chefe da Grã-Bretanha, discutiu os parâmetros da cirurgia plástica sob a perspectiva da lei judaica. Após explicar que nenhuma responsa tinha sido escrita sobre o tópico, ele abordou a questão se alguém pode fazer cirurgia plástica com o objetivo de melhorar a aparência física. Como Rabino Jacobovits descreveu eleqüentemente em sua clássica obra, Ética Médica Judaica:
O problema foi considerado sob quatro aspectos:
1. As implicações teológicas de "aperfeiçoar" a obra de D'us;
2. Os possíveis riscos à vida envolvidos em qualquer operação;
3. A objeção judaica a qualquer mutilação do corpo;
4. A censura ética da vaidade humana, especialmente entre os homens.
Ele concluiu definitivamente que a cirurgia plástica para melhorar a aparência é uma forma de vaidade (especialmente para homens) e é proibida, a menos que o paciente preencha determinados critérios, entre os quais: se a operação é medicamente indicada, como por exemplo após um acidente, ou por graves razões psicológicas; se a correção da deformidade é para facilitar ou manter um casamento feliz; ou se a cirurgia permitirá que a pessoa desempenhe um papel construtivo na sociedade e ganhe um sustento decente.
Estas quatro preocupações éticas do Rabino Jacobovits continuam sendo os temas centrais na maioria das sobre o assunto.
Preocupações éticas
Risco de Vida:
A primeira potencial objeção prática à cirurgia plástica é a obrigação de proteger a saúde na Torá, que poderia limitar os riscos cirúrgicos que alguém possa aceitar como parte da cirurgia plástica. Além dos riscos associados com a cirurgia em si, a anestesia, especialmente a geral, apresenta um risco pequeno mas real de morte ou incapacitação.
Auto-mutilação:
Além da obrigação de proteger a saúde, há a proibição específica da auto-mutilação. Assim como não se pode ferir outra pessoa, também não se pode causar ferimento em si mesmo. A proibição de ferir outra pessoa é chamada chavalá, sendo derivada diretamente do versículo que adverte a corte a não dar a um criminoso condenado mais chicotadas que as devidas legalmente. O versículo é interpretado como significando que se a corte não pode bater num criminoso sem justificativa, certamente um indivíduo comum não pode atacar ou ferir seu vizinho. O Talmud discute se esta proibição se aplica a ferir a si mesmo, concluindo que "aquele que se fere, embora seja proibido, não paga danos. Porém se outra pessoa o ferir, pagará danos. Ferir a si mesmo sem um motivo é chamado chovel b'atzmo. Esta proscrição, no entanto, tem limitações. Somos proibidos apenas de causar ferimento desnecessário a nós mesmos. A questão chave é o que é considerado necessário.
Alterar a obra Divina:
Afirmamos que D'us, como supremo Criador e modelador dos seres humanos, faz cada pessoa exatamente como deveria ser, e que nos "remodelar” é uma afronta ao Seu julgamento. A pergunta que cabe aqui seria: a ordem Divina de curar e a obrigação de procurar tratamento médico se estende à cirurgia plástica?
Vaidade humana:
A Torá ordena que um homem não use roupas de mulher, e que uma mulher não se vista como um homem. Esta proibição vai além de simples roupas, e inclui ações e atividades que são características de um dos sexos. Por exemplo, na maioria das situações um homem não tinge seus cabelos brancos de volta à cor original para melhorar sua aparência, pois esta é considerada uma atividade feminina. A cirurgia plástica também é considerada atividade "feminina".
Abordagens Rabínicas:
Em 1964, Rabi Mordechai Yaacov Breish, Rabi Menasheh Klein e Rabi Moshe Feinstein foram solicitados a regulamentar questões sobre cirurgia cosmética para melhorar a aparência.
Rabi Mordechai, autor de Chelkas Yaakov e importante posek [autoridade em Lei Judaica] na Suíça, foi indagado se uma mulher pode passar por uma cirurgia plástica para endireitar e diminuir o nariz para aumentar sua chance de encontrar um marido. Ele utilizou uma regulamentação anterior de Rabi Abraham de Sochachev do Século Dezenove, autor de Avnei Nezer, como ponto de partida para sua discussão sobre por que é permitido fazer cirurgia ou se submeter a situações de risco, mesmo quando não são absolutamente necessárias. O Avnei Nezer tinha proibido uma criança de fazer cirurgia para endireitar uma perna torta devido ao risco da operação. Rabino Breish coloca diversas objeções a este decreto.
Desde que o médico opere de maneira aceitável, é uma mitsvá para o médico tratar até as doenças que não ameacem a vida, embora ele possa ferir ou matar pacientes involuntariamente. Esta é a natureza da ordem de curar. Além disso, o Talmud permitiu tirar sangue como mecanismo preventivo de saúde, embora fosse algo considerado perigoso. Vemos claramente também que a pessoa não está proibida de entrar voluntariamente numa situação perigosa, pois não proibimos as mulheres de terem bebês, apesar dos riscos associados com a gravidez e o parto.
Rabino Breish também declara que a população em geral passa por cirurgia em condições que não ameaçam a vida com uma taxa de complicações muito baixa. Portanto, ele invoca o conceito de que D'us cuida dos simples, para defender cirurgias de baixo risco. Ele decreta que sob a perspectiva do risco, pode-se dizer que a cirurgia plástica é uma das atividades que a população em geral considera aceitavelmente segura. Para apoiar seu argumento de que alguém pode ferir a si mesmo (independentemente de qualquer risco associado) para tratamento de uma doença que não ameace a vida, ele apresenta duas provas. O Código da Lei Judaica adverte um filho a não remover um espinho, tirar sangue ou amputar um membro de um pai, mesmo por motivos médicos, para não transgredir a ofensa capital (desnecessariamente) de ferir um dos pais.
Rabi Moshe Isserles, em seu comentário ao Código da Lei Judaica, declara que o filho deve abster-se somente se houver alguém presente que possa ajudar o pai, pois caso contrário, o filho pode até amputar o membro se o pai estiver sofrendo. Parece claro que a proibição é apenas de ferir um pai porém o conceito de tirar sangue ou amputação meramente pela dor, apesar do trauma envolvido, não parece ser problemático!
A segunda prova é fundamental para nossa discussão de cirurgia plástica, especialmente a cosmética. O Talmud declara que um homem pode remover crostas de seu corpo para aliviar a dor, mas não para melhorar sua aparência. À primeira vista, isso parece excluir a possibilidade de cirurgia plástica. No entanto, Tosafot, comentando esta declaração, promulga um conceito que demonstra uma compreensão muito sensível da natureza e psicologia humanas: "Se a única dor que ele sofre é ficar constrangido de andar entre as pessoas então é permitido, porque não há dor maior que esta." Tosafot reconhece que não há sofrimento maior que a dor psicológica, e que é muito difícil julgar o grau de sofrimento que outra pessoa está passando como resultado de um defeito perceptível.
Mencionando a dor psicológica associada com a incapacidade de encontrar um cônjuge, Rabino Breish decretou que as mulheres podem fazer cirurgia cosmética.
No mesmo ano, a mesma pergunta foi feita a Rabino Moshe Feinstein (1895-1986). Sua resposta examina primeiro os parâmetros da proibição de chavala. Ele enfatiza que em sua Mishnê Torá, Maimônides descreve claramente chavala como ferimento com malícia. Rabino Feinstein mostra diversos exemplos de ferimentos sem intenção de prejudicar que a literatura religiosa judaica acha aceitáveis. Sua regulamentação final permite a cirurgia quando é no melhor interesse do paciente, mesmo que este não esteja doente e a cirurgia não seja para tratar alguma doença. Como resultado, ele permitiu que a mulher tivesse cirurgia cosmética pois era para seu bem e não a prejudicaria.
Também em 1964, Rabino Menasheh Klein, autor de Mishneh Halachot, lidou com a questão da permissibilidade de cirurgia cosmética para corrigir várias imperfeições faciais que prejudicam a aparência de uma mulher, como um nariz grande demais que torna difícil para ela casar-se, ou a faz sentir-se muito feia. Rabino Klein utiliza uma abordagem engenhosa para avaliar a questão. Ele afirma que existem muitos precedentes para intervenção médica a fim de melhorar a aparência, conforme aparecem nos tempos talmúdicos.
A Mishná discute o caso de um homem que deseja casar-se com uma mulher sob a condição de que ela não tenha defeito (mum), onde um "mum" é definido como qualquer defeito que proibisse um cohen (sacerdote) de servir no Templo. Tosafot declara que se a mulher tiver seu defeito corrigido por um médico antes do noivado, o casamento é válido. Como muitos dos defeitos que se aplicavam a um cohen incluíam imperfeições estéticas da face, pelas quais atualmente as pessoas desejariam fazer cirurgia plástica eletiva e Tosafot permite que estas imperfeições sejam corrigidas por um cirurgião.
Rabino Klein declara que um homem ou uma mulher podem procurar um médico para corrigir um defeito apenas para melhorar sua aparência. Rabino Klein rejeita o argumento de que a cirurgia plástica acarreta qualquer perigo, baseado na informação que recebeu dos médicos. Numa segunda responsa, impressa logo após a anterior, Rabino Klein discutiu cirurgia plástica e peeling químico em homens com respeito à proibição de um homem adotar comportamentos femininos. Ele reitera sua regra anterior e acrescenta que procedimentos cosméticos (menos importantes) estão proibidos aos homens se feitos estritamente para fins estéticos, mas a proibição não se aplica se o defeito causar constrangimento ao homem a ponto de prejudicar sua interação social. Rabino Klein declara sabiamente que tal distinção exige grande dose de honestidade intelectual.
Em 1967, Rabino Yitschak Yaakov Weiss (1902-1989) diretor da corte rabínica Eida Chareidis em Jerusalém e autor de Minchas Yitschak, tratou brevemente do tema da chavala e risco com respeito à cirurgia plástica. Ele faz a mesma abordagem ao ferimento auto-infligido de Rabino Feinstein, argumentando que a proibição de chavala somente se aplica quando o ferimento é infligido com a intenção de causar dano ou degradação. Ele acha que a cirurgia cosmética seria permitida se não fosse o risco da cirurgia, que ele acredita ser uma séria preocupação. Ele refere-se a uma de suas responsas anteriores que foi dirigida a seu parente por afinidade, Rabino Breish, na qual ele proíbe a cirurgia em condições que não ameacem a vida. Embora admitindo que a linha de raciocínio de Rabino Breish tem seu mérito, ele discorda, argumentando que a permissão do Código da Lei Judaica de amputação de um membro é somente numa situação de risco de vida. Ele concorda também com Rabino Breish que as pessoas que desejam cirurgia plástica podem estar doentes, mas declara que não estão em perigo, e portanto hesita em permitir a cirurgia plástica eletiva, e finaliza sua responsa de 1967 dizendo que a questão precisa ser mais estudada.
Apesar do apoio, geralmente forte, entre especialistas haláchicos para a permissibilidade da cirurgia reconstrutora em caso de defeitos congênitos ou ferimentos traumáticos, surge uma opinião discordante no que diz respeito à cirurgia cosmética meramente por questões estéticas.
Eu sou o Eterno que te cura
Há uma tensão inerente no Judaísmo sobre os fundamentos filosóficos da ordem de curar. Enquanto a Torá habilita claramente o médico a tratar doenças, existe controvérsia sobre até que ponto se estende esta permissão. Embora a maioria dos comentaristas e eruditos legais interpretem que a Torá concede ampla licença para curar, há um consenso de que o paciente deve estar enfermo para permitir que o médico o trate, especialmente se o tratamento for perigoso ou requer que o paciente seja ferido no processo da cura.
Esta é uma das maiores preocupações de Rabino Eliezer Yehuda Waldenberg, autor de Tzitz Eliezer, artigos publicados em vários volumes, dos quais muitos tratam de assuntos médicos. Primeiro, Rabino Waldenberg põe objeção a fazer cirurgia em alguém que não esteja doente ou sofrendo. Ele argumenta que tais atividades estão fora dos limites da função de curar do médico (pois ele questiona se a cirurgia cosmética está realmente incluída na categoria de cura). Ele afirma ainda que o paciente não tem o direito de pedir ao médico para feri-lo com o mero objetivo de aumentar a beleza. Rabino Waldenberg então apresenta o argumento teológico que como supremo artesão, D'us cria cada pessoa à Sua imagem, exatamente como ele ou ela deveria ser, sem nada extra ou nada faltando. Ele portanto decreta que a cirurgia cosmética que não seja por sofrimento ou doença real é uma afronta a D'us e proibida.
Um argumento final
O último posek importante a expressar uma opinião é uma conclusão ao nosso debate sobre as diversas abordagens das autoridades legais judaicas à cirurgia plástica.
Dr. Abraham relata a opinião de Rav Shlomo Zalman Aurbach (1910-1995), o grande posek israelense, sobre a questão de uma pessoa cujo braço ou dedo foi traumaticamente amputado.
Em resposta àqueles que proíbem a cirurgia plástica, Rabino Aurbach discutiu a questão sobre se um membro amputado poderia ser recolocado através de cirurgia que exija anestesia geral, mesmo se o paciente já foi tratado, portanto ele não está mais em perigo de vida. Ele decretou que a cirurgia certamente seria permitida num dia de semana, "pois a cirurgia não seria considerada um ferimento, mas um reparo e tratamento para salvar o membro. Por que então deveria ser proibido para alguém fazer cirurgia plástica para parecer normal?"
Numa responsa publicada, Rabino Aurbach escreve:
“Se a cirurgia plástica é feita para impedir sofrimento e vergonha causados por um defeito na aparência (por exemplo, um nariz que seja muito anormal), isso seria permitido, baseado no Tosafot e Guemara, pois o objetivo é remover um defeito. No entanto, se o único motivo for a beleza, isso não é permitido.”
Rabino Aurbach resume o consenso da maioria dos especialistas legais ao decretar que a cirurgia plástica que permita a alguém parecer normal, e mais importante, ver-se como normal, é permitida. É somente quando a cirurgia é feita meramente por vaidade que os rabinos têm sérias reservas. Claramente, porém a cirurgia reconstrutora e até pela aparência que constrange a pessoa, não é questão de vaidade. Este foi claramente o caso com a receptora francesa da face.
Isso nos deixa com uma mensagem humana muito forte. Devemos sempre apreciar as prisões auto-construídas nas quais alguns de nossos amigos e conhecidos vivem. Seja pela tortura de se sentir não atraente ou a sensação de falta de esperança de um amigo que esteja perdendo a esperança de jamais ter um marido ou esposa, devemos sempre procurar maneiras de aliviar sua dor.
ב"ה
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