Na Parashá Shelach, a Torá relata como os homens enviados por Moshê como espiões fizeram com que os judeus temessem entrar na Terra Santa dizendo a eles1: “As pessoas que habitam a terra são muito fortes... gigantes. Não somos capazes de lutar contra eles, pois eles são mais fortes do que Ele”, isto é, do que o próprio D'us. Como nossos Sábios comentam2: “É como se o dono não pudesse remover seus artigos de lá́”.
Toda história na Torá serve como uma lição para o serviço Divino do Povo Judeu em todas as gerações. Que lição podemos aprender do episódio dos espiões?
É verdade que nós ainda estamos trabalhando para compensar as consequências negativas do relato dos espiões. Mas, mesmo assim, não é necessário conhecer todos os detalhes da história; um relato geral teria sido suficiente. Além disso, uma explicação se faz necessária em relação à questão central: Como os espiões foram capazes de assustar os judeus a ponto de dissuadi-los de querer entrar em Eretz Yisrael? Através de sua jornada a partir do Egito, o povo tinha visto como D'us tinha produzido milagres sobrenaturais. Por que eles se sentiram intimidados pelos habitantes de Canaã?
Por exemplo, a Torá descreve3 o deserto, através do qual os judeus passaram, como habitado por “cobras, serpentes e escorpiões”. Nossos Sábios explicam4 que mesmo que estas criaturas fossem de tamanho monstruoso, elas eram mortas pela Arca5 e pelas nuvens de Glória6.
E assim como D'us protegeu os judeus contra qualquer mal, Ele também produziu milagres em seu benefício. Todos os dias, os judeus comeram o maná dos céus e beberam água da fonte de Miriam. Da mesma forma, D'us produziu milagres em Seu nome contra outras nações, o mais notável destes sendo a devastação dos egípcios no Mar Vermelho. Tão grande foi um milagre como este que nossos sábios o descrevem como sendo “difícil”7.
Eles testemunharam estes milagres com seus próprios olhos. Por que, então, eles aceitaram os argumentos dos espiões? Por que eles não assumiram que, assim como D'us tinha derrotado os egípcios, Ele também derrotaria os canaanitas?
Estas questões são reforçadas pelo fato de que Calev, ao incitar os judeus a rejeitarem o julgamento dos espiões não se referiu aos milagres do êxodo ou àqueles que ocorreram no deserto. Em vez disso, ele meramente encorajou-os dizendo8: “Vamos subir e tomar posse [da terra]”.
O Medo dos Canaanitas
Podemos dizer que a derrota do exército do Egito não foi suficiente para inspirar confiança em relação à batalha contra os reis de Canaã, que eram fortes e poderosos9? Como declarado no Cântico entoado no Mar Vermelho, quando os canaanitas ouviram sobre a abertura do oceano, eles todos derreteram em temor10 – um temor tão poderoso que ele ainda os afetava 38 anos depois11 quando Yehoshua enviou espiões para a terra.
Além disso, nossos Sábios afirmam12 que sempre que uma nação subjuga o Povo Judeu, D'us faz daquela nação uma superpotência. Assim, quando os judeus foram escravizados no Egito, os egípcios dominaram o mundo13, incluindo os 31 reis de Canaã. Assim, a devastação dos egípcios certamente lançaria temor nos corações de seus vassalos.
Onde os Espões Erraram
Na Chassidut14, explica-se que o motivo real porque os espiões queriam permanecer no deserto em vez de entrar em Eretz Yisrael foi porque eles não queriam se envolver com questões materiais. No deserto, o povo foi removido de todas as preocupações materiais. O povo recebia seu sustento físico de forma milagrosa, e até mesmo suas roupas cresciam com eles, como comentaram nossos sábios.15
Os judeus sabiam que, quando entrassem em Eretz Yisrael, o maná cessaria e a fonte de Miriam não mais os acompanharia. Em vez disso, eles teriam de tirar seu sustento do “pão da terra” e teriam de executar o trabalho necessário para obtê-lo. Por este motivo, os espiões reclamaram que Eretz Yisrael era “uma terra que devora seus habitantes”.16
Esta frase foi bem escolhida. Quando um alimento é ingerido, ele é absorvido no corpo da pessoa que compartilha dele. Assim também - queixaram-se os espiões - quando os judeus entrassem em Eretz Yisrael, eles seriam consumidos pela terra, e eles próprios se tornariam mundanos17. Isto seria um drástico desvio de sua conduta no deserto, onde eles estavam envolvidos somente com o espiritual.
De fato, no deserto, até mesmo a comida que eles ingeriam, o maná, refinava as suas naturezas, tornando-os aptos ao estudo da Torá, como refletido na declaração de nossos Sábios18: “A Torá foi dada somente àqueles que compartilharam o maná”.
Mas a intenção de D'us na criação foi a de que uma moradia fosse construída para Ele nos mundos inferiores19. Isto requer envolvimento nas dimensões materiais da existência, tornando-se recipientes para a Divindade. Consequentemente, os espiões estavam errados; o objetivo final da jornada dos judeus no deserto era a sua vida em Eretz Yisrael, onde eles construiriam uma moradia para D'us20. A passagem através do deserto foi meramente uma fase preparatória.
Milagres e Natureza
Baseado no exposto acima, podemos apreciar porque, apesar dos milagres evidentes testemunhados durante o êxodo, na abertura do Mar Vermelho e através de sua jornada no deserto, os espiões ainda duvidaram do poder de D'us em relação à conquista de Eretz Yisrael. Eles não tiraram uma lição destes milagres, pois eles viram o milagroso e o mundano como dois planos não relacionados. Os milagres do deserto não puderam servir como indicadores relacionados ao seu futuro em Eretz Yisrael, porque lá eles teriam de se envolver com a existência material.
No deserto, eles estavam envolvidos com assuntos espirituais, e suas vidas eram controladas pelos milagres. Em Eretz Yisrael, onde eles estariam envolvidos em questões materiais, os espiões temiam que suas vidas fossem controladas pela ordem natural. (E, de fato, em relação a certos assuntos, esta transição ficou evidente imediatamente após a sua entrada na Terra Santa. O maná, a fonte de Miriam e as nuvens da Glória, todos eles cessaram.)
Se a ordem natural prevalecesse - argumentaram eles – então, havia um motivo para temer os “descendentes dos titãs”21 que habitavam Eretz Yisrael. De acordo com a ordem natural, eles eram mais fortes do que os judeus.
Com base nisto, podemos entender a reafirmaçãode nossos Sábios do relato dos espiões: “é como se o dono não pudesse remover seus artigos de lá”. Os espiões sabiam – de fato, eles tinham visto com seus próprios olhos – que D'us é o “dono” do mundo e pode fazer com ele o que Ele desejar. Além disso, eles perceberam que toda entidade no mundo é um dos “artigos” de D'us.
“Remover seus artigos” significa elevar as faíscas de Divindade envolvidas na substância física de Canaã. Isto – os espiões sentiram – é possível se alguém conduz a sua vida de uma forma espiritual. No deserto, tal conduta eé possível, mas não dentro do mundo material. Para que o mundo continue inalterado, governado pelas leis da natureza, e ainda assim se tornar um meio para a Divindade, seria necessário –pensaram eles – que D'us sacrificasse a Sua “posse” e Ele próprio aceitasse os ditados da ordem natural. Consequentemente, se for a vontade de D'us que os judeus se sujeitassem às leis da natureza, os espiões estavam certos de que não haveria lugar para milagres.
Este argumento foi contestado por Calev e Yehoshua com a declaração: “Se D'us nos ama... Ele nos dará [a] terra”22. Já que o desejo de D'us é que os judeus criassem uma moradia para Ele em Eretz Yisrael, o povo deveria perceber que23: “Eles são nosso pão... D'us está conosco. Não os temamos”.
Não há necessidade de temer o confronto com o mundo. Mesmo que a ordem natural continue, D'us sempre acompanha o Povo Judeu e lhes concede um sucesso sobrenatural. E, assim, o mundo pode ser considerado “nosso pão”24, isto é, ele se tornará parte de nosso ser, e não nos impedirá de construir uma moradia para a presença Divina.
Quando a Transcendência Também é um Limite
Na verdade, milagres envolvidos na ordem natural são de um nível superior aos milagres que transcendem a natureza25. Milagres que transcendem a ordem natural apontam para uma Divindade transcendental, que atrapalha a natureza. Os milagres que estão envolvidos dentro da ordem natural, ao contrário, indicam que D'us está acima tanto da natureza quanto da transcendência, e pode, portanto, fundir os dois e fazê-los funcionar em harmonia.
Esta habilidade foi revelada no Codesh HaCodashim, o Santo dos Santos, onde a Arca Sagrada não ocupava nenhum espaço. Para explicar: Havia dez cúbitos da parede leste do Santo dos Santos até o lado leste da Arca, e dez cúbitos da parede oeste até o lado oeste da Arca, e a Arca, propriamente dita, tinha a largura de um cúbito e meio. Ainda assim, a largura de toda a câmara era de somente 20 cúbitos!26. Apesar do fato de que a Arca media 2,5 por 1,5 cúbitos, ela não ocupava nenhum espaço dentro do Santo dos Santos; limitação e transcendência tinham se fundido27.
Para que o Povo Judeu afetasse o mundo material, era necessário que eles entrassem em Eretz Yisrael. No deserto, eles viviam acima da natureza. Sua entrada em Eretz Yisrael tinha a intenção de fundir natureza e transcendência. Por este motivo, sua entrada foi marcada pela abertura do Jordão com a Arca28. A colonização de Eretz Yisrael e a Arca compartilhavam este tema29: a fusão da limitação e da transcendência30.
Conquistando Nossa Herança
Isto nos permite entender a escolha das palavras por Calev31: “Vamos ascender e tomar posse dela”. No hebraico, as palavras “vamos ascender” são repetidas, alê naalê. A implicação disto é que dois tipos de ascensão estão envolvidos. Se a segunda ascensão fosse do mesmo tipo da primeira, ela teria sido considerada parte daquela primeira ascensão32. Calev estava aludindo ao fato de que a entrada em Eretz Yisrael envolveria não somente uma ascensão a um nível acima da natureza (como no deserto), mas também uma ascensão acima do nível da transcendência33.
Isto nos ajuda a entender o termo hebraico usado para “e tomar posse”, viyerashnu. Isto se relaciona à palavra yerushá, significando “herança”. Uma herança não é considerada uma transferência de propriedade.
Quando um artigo é comprado, ele é transferido do domínio do vendedor para o do comprador. Quando, ao contrário, um artigo é herdado, ele permanece no mesmo domínio, pois a essência de quem faz o testamento é transferida ao seu herdeiro34.
Esta era a intenção de Calev quando ele disse “nós tomaremos posse dela”. Quando entrarmos em Eretz Yisrael e fizermos das questões materiais meios para a Divindade, nós tomaremos posse da terra como uma herança, pois através destes esforços, nós nos relacionaremos à essência de D'us.
Espiões no Século 20
A lição da história dos espiões pode ser explicada como se segue: Em sua vida pessoal, todo judeu viaja através do deserto e se estabelece em Eretz Yisrael. Similarmente, estas duas frases são refletidas em nossa conduta a cada dia. Começamos o dia com reza e um período fixo de estudo e então saímos para nos envolver na elevação das entidades materiais. É verdade que os tsitsits e os tefilin que usamos representam envolvimento com as limitações da existência material. Isto é conseguido quando uma pessoa se envolve em sua profissão ou em suas questões pessoais, executando estas tarefas de acordo com a diretiva35: “Conheça-O em todos os teus caminhos”.
Alguém poderia argumentar: “Durante o estudo da Torá, que é a sabedoria e a vontade de D'us, podemos sentir uma conexão com D'us que exclui tudo mais. E, durante a reza, quando ficamos perante D'us com completo bitul, até mesmo o nosso ‘eu’ deixaria de ser sentido. Devemos ter consciência somente de D'us. Mas como esta conexão pode ser mantida durante o nosso envolvimento com as questões materiais? A própria palavra hebraica para ‘mundo’, olam, se relaciona com a palavra helam, significando ‘ocultação’36. Pois o mundo é caracterizado pela ocultação da Divindade e a Torá ordena que nosso envolvimento no mundo reconheça suas limitações”.
“Como alguém pode chegar ao ponto em que ele mostrará preocupação pelas entidades materiais e usá-las somente para o seu serviço Divino?”
A “terra” – poderíamos argumentar - “devora todos os seus habitantes”. Já que estamos envolvidos nas questões materiais durante a maior parte do dia, não somente podemos executar o serviço Divino requerido, mas o nosso envolvimento com as entidades materiais nos confunde e nos perturba durante a reza e o estudo.
Esta, entretanto, é a abordagem dos espiões. Eles insistiram que o envolvimento no mundo é um desafio insuperável; mesmo “o dono não pode remover seus artigos de lá”.
A verdade é que, apesar de que a observância da Torá e das mitsvot deve se conformar às limitações da ordem natural37, não precisamos ser restringidos por estas limitações. “Se D'us nos ama38” – isto é se nós seguirmos o caminho que D'us ama39 e agirmos como Seus agentes – temos o potencial de unir a natureza e aquilo que está acima da natureza, transformando o mundo em uma moradia adequada para D'us.
Este potencial é concedido pela Arca, que permanece intacta na época atual, enterrada sob o Beit HaMicdash40.
Indo Além de Nós Mesmos
Na Cabalá e na Chassidut41, está explicado que os espiões funcionavam no mundo do pensamento e não desejaram descer ao mundo da fala. Outras opiniões42 explicam que eles desejavam descer ao mundo da fala, mas não ao mundo da ação.
A diferença entre pensamento e fala é que o pensamento é auto-contido. Fala, ao contrário, alcança outras pessoas. Paralelos existem dentre o serviço Divino dos judeus no deserto e seus serviços Divinos em Eretz Yisrael.
A entrada em Eretz Yisrael exigiu mais do que a observância das mitsvot como elas estão envolvidas nas entidades materiais (em oposição ao estudo sincero da Torá), e até mesmo mais do que envolvimento com as entidades materiais no espírito de “Conhece-O em todos os teus caminhos”. Estes esforços podem ser inteiramente auto- contidos. E quando o serviço Divino de um judeu é auto-contido, ele ainda está “no deserto”, no mundo do pensamento, mesmo que ele possa estar envolvido com entidades materiais. “Entrar em Eretz Yisrael” significa envolver-se com os outros, devotando-se a eles, e transformando-os em judeus de Torá.
O yetzer hara poderia argumentar: Se alguém se devota a outro judeu e se esforça para influenciá-lo, ele certamente se sentirá em um nível mais alto. E estes sentimentos serão reforçados se a outra pessoa responder com agradecimentos, honra e louvor. Já que ninguém deseja ter consciência de seu próprio ego ou, D'us nos livre, ser possuído pelo orgulho – que é a fonte de todo o mal43 – é preferível evitar tal envolvimento em primeiro lugar.
Esta, entretanto, é a abordagem dos espiões, que temiam a terra que “devorava seus habitantes”. Quando percebemos a verdade – que “D'us nos ama” – e nos dedicamos a executar a vontade de D'us, é impossível descer. Ao contrário, nosso caminho apontará para cima, à ascensão máxima.
O yetzer hara ainda poderia argumentar: “É verdade que devemos nos envolver com as outras pessoas, mas é suficiente trabalhar com uma pessoa em nosso próprio nível? Não há necessidade de descer e trabalhar para salvar um indivíduo em um nível inferior. Tal envolvimento certamente nos levará a nossa própria descida”.
Neste contexto, a interpretação cabalística da história dos espiões ensina que a fala não é suficiente; a ação é necessária. A fala se relaciona a iguais ou a quase-iguais – pessoas que ouvem e entendem o que dizemos. O ato, ao contrário, pode envolver até mesmo a matéria inanimada.
A história dos espiões ensina que nós devemos nos envolver até mesmo com uma pessoa cujo nível espiritual é tão baixo a ponto de ela ser considerada uma entidade inanimada. É através de tais esforços que chegaremos à ascensão final e à chegada da época quando tomaremos posse de Eretz Yisrael como uma herança eterna.
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