Afikoman
Para algumas crianças, é o ponto alto do seder. No decorrer dos anos descobriram que como o seder não pode ser concluído até que este último pedaço de matsá seja comido, as crianças podiam “roubá-lo” para coagir seus pais exaustos, ansiosos para dormir, em conceder a elas alguma espécie de presente que eles poderiam talvez escolher, daí surgiu a ideia de “Presentes de Afikoman”.
Para os adultos, parece apenas um truque ingênuo para dar às crianças um “recesso” autorizado, uma chance de correr em volta e se divertir enquanto ao mesmo tempo mantê-los envolvidos naquilo que está acontecendo à mesa.
O Que é Afikoman?
Uma das primeiras coisas que fazemos no seder de Pêssach, após Kidush e Carpás, é “Yachatz”, a quebra da matsá. Tipicamente uma matsá irá se quebrar em dois pedaços incongruentes. O pedaço maior, o Afikoman, que literalmente significa “deserto”, é deixado de lado, para ser guardado para mais tarde, e o pedaço menor é colocado à nossa frente. É sobre este pedaço menor que agora recitamos a Hagadá inteira.
Muitas das partes mais cruciais e integrais da experiência do seder são prefaciadas com a instrução: “Descubra a matsá quebrada” ou “levante e matsá quebrada”. Essa matsá, exatamente porque é pequena e quebrada, representa nosso “pão da aflição”, e o “pão da pobreza”. É a matsá quintessencial, e desempenha um papel importante no desenrolar do seder. Se o seder fosse uma peça, este pedaço de matsá seria um dos protagonistas. Finalmente, após concluir a recitação da Hagadá inteira, é a primeira coisa a ser comida, e com isso cumprimos nossa obrigação de comer matsá.
O pedaço maior, porém, é escondido, deixado de lado e ausente deve esperar pacientemente até seu retorno muito mais tarde na noite. Somente após recitar a Hagadá, após comer matsá, maror, korech, o ovo, e após a refeição inteira lembramos dela e a recuperamos de seu esconderijo, e isso se torna nosso “deserto”.
Preferivelmente, é a última coisa a ser ingerida naquela noite para que possamos dormir com o sabor da matsá em nossa boca e em nossa lembrança. Embora aparentemente relegada a uma parte secundária na peça, e colocada numa espécie de papel secundário, o Afikoman é tão integral, crucial e necessária à experiência do seder como seu “irmão mais novo”. Nossos sábios nos dizem “ain maftirin ad acharei hapessach afikoman,” que significa “O seder não pode ser concluído sem o Afikoman.” Também substitui e representa aquilo que foi o ponto alto do seder, o sacrifício pascal.
Um Conto de Duas Matsot
A história de escravidão de Pêssach seguida pela liberdade é a eterna história do judeu. “Pois não apenas eles ficaram contra nós para nos destruir, mas em toda geração eles tentam isso novamente. E somente D'us nos salva das mãos deles,” declaramos na Hagadá.
É fascinante observar o local prestigioso que o seder tem e continua a ter na vida de tantos judeus. Mais judeus conduzem alguma forma de Seder de Pêssach do que frequentam serviços das Grandes Festas. O seder toca uma corda profunda dentro de nós. Muitas das nossas mais queridas lembranças da infância foram criadas à mesa de seder de nossos pais. O judeu de alguma forma sente que não pode ignorar a história do seder; é nossa história pessoal como indivíduo e como um povo.
Agora podemos entender o profundo simbolismo por trás da quebra e separação da matsá. Talvez a matsá represente o povo judeu, a Congregação de Israel, que no decorrer da história tem sido constantemente esmagada, achatada e humilhada (como a matsá), e tem recebido para comer o “pão da pobreza”, o “pão da aflição”. Muitas e muitas vezes não pudemos esperar até nossa massa subir, tivemos de pegar a bengala e partir sem nada além da “matsá”, literal e figurativamente.
A Divisão
Mas por um longo tempo agora, nossa matsá tem sido dividida; somos um povo dividido. Uma parte de nosso povo, a parte menor de nossa matsá com certeza, ainda se senta teimosamente à “mesa do seder”, sentam ao redor da mesa de seus ancestrais, seguindo as tradições, continuando os rituais, estudando as leis e contando a história.
Essa é a parte menor da matsá, a minoria de nosso povo, que se recusa a levantar-se da mesa de Pêssach e encontrar outras alternativas para a vida e para a felicidade. Sim, às vezes eles se sentam ali com olhos fechados, meio adormecidos, mas estão presente. Esses são os judeus que despertam toda manhã lembrando que somos parte de uma longa narrativa – começando com Abraham, culminando com Mashiach – e devemos viver nossa vida inspirados por essa narrativa.
Eles usam um talit, colocam tefilin, vão à sinagoga, rezam a D'us, e colocam seus filhos em escolas judaicas para receberem uma intensa educação de Torá. Esses são os judeus que celebram o Shabat, comem casher, não comeriam uma refeição fora de uma Sucá, ou vestiriam uma roupa feita de lã e linho.
A parte maior da matsá – a maioria de nosso povo – se afastou da mesa do seder, para pastos estrangeiros. Encontraram alternativas para a Torá. Na verdade, a maior parte da nossa nação permanece ignorante e em muitas maneiras apática ao nosso legado e sua sabedoria, milhões de nossos irmãos se sentem alienados do nosso povo e sua história.
E podemos identificar o momento na história quando a matsá foi “partida”.
Há cerca de 250 anos, com a Revolução Francesa, e aquilo que ficou conhecido como a era do “Iluminismo”, ou “A Idade da Razão”, as paredes do shtetl ruíram e muitos, na verdade a maioria, dos judeus disseram adeus à sua antiga ideologia devido às ideologias liderantes do dia. Voltaire substituiu Moshê; Rousseau substituiu Rashi. Kant e Nietzsche superaram Abaye e Rava. Na França e na Alemanha, o iluminismo levou à alienação de centenas de milhares de judeus da tradição. Algumas décadas depois, na Europa Ocidental, milhões de judeu deram as boas vindas à Torá por uma quantidade de novos “ismos” que pareciam muito mais promissores que o antigo Judaísmo. O nacionalismo sionista secular, por exemplo, captou a imaginação de incontáveis judeus jovens, substituindo um D'us transcendente com um pais concreto.
Na Rússia, judeus se juntaram para apoiar o marxismo, comunismo e o socialismo.
Na América, mais de um milhão de judeus se assimilaram somente entre 1840 e 1930. Nas últimas décadas nos Estados Unidos, perdemos outro milhão de nossos filhos.
E a partilha da matsá continua. Continuamos a ser um povo dividido.
A parte pequena da matsá olha com desdém para o pedaço maior da matsá. “Eu estou na mesa do seder; você está perdido e afastado,” enquanto a parte grande da matsá com frequência olha para o pedaço pequeno da matsá com espanto, e piedade, perguntando-se como ele consegue permanecer tão isolado e separado da modernidade no novo mundo.
Aqui descobriremos o segredo do Afikoman, Abram seu coração…
O Chamado do Rebe
O Rebe Menachem Mendel Schneerson (1902-1994), nasceu em 11 de Nissan de 1902, na Ucrânia, dias antes de Pêssach. Crescendo no auge das revoluções que varriam o mundo e captavam os corações e almas de milhões de judeus, o Rebe observava a “matsá” sendo partida, fragmentada, quebrada, e então quase completamente consumida pelas chamas do Stalinismo e do Nazismo.
A Providência fez a alma do Rebe agraciar nosso mundo uns poucos dias antes do seder, talvez porque sua mensagem de vida captou a notável história do Afikoman.
Qual foi a mensagem do Rebe para nossa geração?
Que a parte maior da matsá pode estar ausente da nossa mesa do seder, mas é nosso Afikoman; que nossa matsá pode ser dividida, mas ainda somos uma matsá. Milhões de judeus podem estar ausentes da mesa do seder, mas eles jamais serão esquecidos. Mais importante: não podemos concluir nosso seder se não trouxermos de volta o pedaço maior da matsá que foi levado da mesa do seder.
O pedaço pequeno da matsá jamais será capaz de atingir a culminância no seu seder se não chegar até seu irmão-matsá e levá-lo de volta à mesa do seder, reconhecendo a verdade de que somos um povo e cada um de nós tem um local de dignidade à eterna mesa da história judaica e sua consciência.
Essa, o Rebe acreditava, é a missão do nosso tempo. O seder está quase completo, a história quase terminada. Mashiach está no nosso limiar. A refeição foi comida, e temos tido nossa parte no maror, de ervas amargas e sofrimento. E agora devemos lembrar do Afikoman. Devemos procurar o Afikoman, e com muito amor e sensibilidade, trazê-lo de volta à mesa, e deixá-lo se reunir com sua própria essência, sua própria história, sua própria alma.
Às vezes o Afikoman é difícil de localizar, é difícil identificar o judeu assimilado. Às vezes ele luta para identificar a si mesmo. Mas ao final da noite, no fim de seu exílio, ele irá retornar para ouvir a história do Êxodo, tomar parte na mitsvá e passá-la adiante aos seus próprios filhos. Pois nenhum judeu será deixado para trás. Somente então poderemos concluir nossa jornada e realmente estar “No próximo ano em Jerusalém”.
Nota do autor:
Meus agradecimentos a Rabi Zalman Schmukler (Los Angeles) por partilhar o núcleo da ideia acima, e a Rabi Avi Shlomo pela sua ajuda em transcrever este ensaio.
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