O primeiro interrogatório ocorreu na quinta-feira, às vinte e duas horas.
O Rebe já cumpria dois dias de jejum total em sinal de protesto por haverem detido seus tefilin. Enfermo, dolorido, fraco e debilitado pela violência física que sofreu e mais ainda pelo jejum que praticava, foi conduzido ao interrogatório.
Havia três pessoas presentes: dois russos e o judeu Lulov, de vinte e três anos de idade. O chefe dos interrogadores era um russo com o nome de Dachtriov.
O Rebe foi conduzido a uma imensa sala. As paredes eram de mármore com enormes canos embutidos. Estes eram os célebres “muros com ouvidos”, porque através deles a conversa entre o interrogador e o prisioneiro podia ser escutada pelos agentes da G.P.U. que a transcreviam em salas vizinhas.
Quando o Rebe entrou, voltou-se aos interrogadores e observou: “É a primeira vez que entro em uma sala sem que ninguém se ponha de pé!”
“Sabe onde se encontra?” - perguntaram-lhe seus interrogadores.
“Sem dúvida” - respondeu o Rebe - “tenho plena consciência de que me encontro em um lugar onde não é obrigatório ter uma mezuzá. Há, vários lugares dessa natureza que não requerem uma mezuzá; por exemplo, um estábulo ou um banheiro…”
Os interrogadores e, em particular, o judeu, Lulov, trataram o Rebe de maneira rude e depreciativa. Zombaram e escarneceram nervosamente dele.
“Basta de zombarias” - disse-lhes o Rebe. “E devolvam o que me pertence. Vocês não têm o direito de acusar-me.”
“Silêncio!” - exclamou Lulov, irado. Estendeu sua mão e disse: “Vê este braço que está à sua frente? Desde os meus catorze anos foi dedicado à sagrada tarefa de aniquilar àqueles que se assemelham a você e que se opõem ao progresso. Destruiremos a todos, Você pede talit e tefilin? Nós os jogaremos no lixo!”
O Rebe golpeou a mesa com o punho e exclamou: “Vil criatura!”
Seus rostos assumiram então um ar sombrio e o funcionário de categoria superior começou a ler diversas acusações, e a enumerá-las detalhadamente:
• O prisioneiro é acusado de fomentar as forças reacionárias na U.R.S.S.;
• É acusado de ser contra-revolucionário;
• Os judeus da U.R.S.S. consideram- no sua mais alta autoridade religiosa e exerce considerável influência sobre eles;
• Exerce também influência sobre os judeus soviéticos intelectuais, assim como sobre a burguesia dos EUA;
• É o chefe daqueles que se rebelam contra o progresso;
• Temos plena consciência de que sua influência se alastra sobre toda a Rússia através de sua rede educacional, assim como mediante outras instituições religiosas;
• Mantém correspondência assídua com países estrangeiros e recebe milhares de cartas de todas as partes do mundo;
• Tem estabelecido comunicações secretas por intermédio de mensageiros que viajam a outros países, visando o fortalecimento da religião na Rússia com vistas de suscitar, assim, conflitos contra o governo soviético.
Ao terminar, o funcionário pôs sobre a mesa um grande maço de cartas e disse: “Este pacote revela sua face verdadeira. Estas cartas têm um estranho conteúdo e suspeitosamente místico. Quais são seus vínculos contra-revolucionários com o Professor Bartichenco?”
O Rebe, sem se sentir atemorizado nem confuso, respondeu: “Não negarei que os judeus me consideram um líder, mas não sou culpável de nenhum delito. Não imponho nem afirmo minha autoridade sobre ninguém e jamais a empreguei de modo algum contra a União Soviética.
“A acusação no sentido de que domino e imponho minha autoridade sobre os judeus é totalmente incorreta. A coação e a força são realmente estranhas às tradições da Chassidut. O significado de liderança, na perspectiva chassídica, é procurar atingir a perfeição ética e a espiritualidade elevada, a fim de que os demais possam aprender a imitá-las e seguir as mesmas trilhas. Isto não pode ser conseguido através da força ou do poder, mas apenas através de uma vontade virtuosa e livre. Os Chassidim aprendem, por vontade própria, de seu Rebe e dirigente.
“Minha responsabilidade é a de ocupar-me em permitir que todo aquele que deseja permanecer fiel ao judaísmo consiga este objetivo. Não obrigo nem imponho de modo algum. Tudo isso se exerce por vontade própria e em circunstâncias de plena liberdade. Que crime há nisso?”
No curso de sua defesa, o Rebe se estendeu sobre a natureza da Chassidut; os interrogadores russos pediram a Lulov que lhes explicasse.
O ciclo da história se repetia.
Cento e trinta anos antes, seu antepassado, o Alter Rebe (Rabi Shneur Zalman de Liadi) tivera que esclarecer o conceito de Chassidut perante o Czar Paulo. Oitenta e sete anos antes, o Tsêmach Tsêdec (Rabi Menachem Mendel, terceiro lubavitcher Rebe) virase obrigado a explicar a Chassidut aos oficiais do Czar Nicolai. E agora, seu descendente devia expor os pensamentos de Chassidut diante dos membros da G.P.U.
O Rebe continuou dizendo: “Nunca arrecadei impostos de ninguém. Afirmei que os judeus são obrigados a estudar Torá. E quando cumprem este preceito, automaticamente criam escolas para as crianças e Yeshivot para os jovens. Não existe proibição alguma, segundo a lei soviética, contra os chadarim - escolas hebraicas primárias tradicionais - nem contra as yeshivot.
Carlinco, o fiscal-chefe-do-Estado da União Soviética declarou explicitamente: ‘Jamais se promulgou uma lei oficial na União Soviética contra as instituições de ensino religioso.’ Em vista disso, a quem deve-se obedecer: a Carlinco ou a Lulov?
“Nenhum de meus esforços e declarações públicas” - continuou dizendo o Rebe - “visam desafiar a lei soviética.
Se minhas palavras em relação ao estudo de Torá suscitam uma dedicada reação, e se nossos correligionários dos Estados Unidos que enviam dinheiro para ajudar a seus parentes destinam modestas somas para o estudo de Torá e para as necessidades educacionais dos filhos de seus parentes, isto não representa uma ameaça à União Soviética. Ao contrário; deste modo, entra ajuda do exterior e fortalece-se a economia!
“No que se refere à correspondência mencionada, o professor Bartichenco havia empreendido estudos sobre o misticismo judaico. Opinava que de algum modo o símbolo do Maguên David expressava profundos conceitos cabalísticos, e que o domínio desses conhecimentos poderia constituir fonte de grande poder.
“Há quatro anos, em Sucot de 5684 (1924), Bartichenco dirigiu-se a mim por me considerar uma autoridade na Cabalá, e pediu-me que lhe revelasse o significado esotérico do Maguên David.
Procurei convencê-lo de que havia sido objeto de uma ilusão, uma vez que em Chassidut não há nada que permita supor que o Maguên David possua grandes poderes inerentes. Apesar disso, o professor insistiu em enviar-me numerosas cartas, suplicando-me que lhe revelasse o significado oculto do Maguên David. Esta é a explicação cabal de minha correspondência com o professor Bartichenco.
“Escute-me, Lulov” - disse o Rebe com enfado - “querem me fazer objeto de uma nova acusação ao estilo do processo Beilis. Você se lembra quando o Czar Nicolai contratou professores e eruditos a fim de urdir uma falsa história de ritos sanguinários contra os judeus, e foi desprestigiado?
Você também se verá frustrado em suas intenções. Estou a par dos métodos inescrupulosos que você e seus cúmplices empregam, quando desejam encarcerar um professor judeu: colocam contrabando ou uísque ilegal entre seus bens, a fim de poder prendê-lo e enviá-lo a zonas desertas.
Vocês se propõem também a desonrar-me mediante acusações fictícias e falsas que, de fato, não têm nenhum fundamento? Querem que eu seja objeto de mesquinhas falsidades? Não o conseguirão, porque as acusações são totalmente infundadas.
“Minhas palavras e minhas ações foram sempre abertas e claras. Faz três anos, em 5684 (1924), escrevi uma carta a todos os judeus dos Estados Unidos, exortando-os energicamente a apoiar o estabelecimento agrícola judaico na União Soviética. Vocês me prendem por considerarem-me inimigo dos judeus e do Estado. Isso é totalmente errôneo. Apesar de estarmos divididos por grandes discrepâncias, apóio todo esforço criativo. Minha carta aos Estados Unidos respalda esta afirmação.
“Não me façam objeto de falsas acusações. Não atuo de maneira encoberta, mas sim de forma aberta e diante dos olhos de todos. Não exerço atividades contra a lei soviética.”
“É verdade” - observou o russo Dichtriov, que presidia o comitê de interrogação.
“Estamos plenamente cientes de sua atitude positiva com relação ao estabelecimento agrícola, assim como de sua carta aos Estados Unidos, e tomamos nota dessas ações com reconhecimento.”
Fazendo pouco caso desse diálogo, Lulov prosseguiu seu interrogatório ainda de forma rude e ofensiva. Quando o Rebe voltou a pedir seus tefilin, Lulov não respondeu, mas voltou a utilizar termos ofensivos, apoiado por seus colegas.
“Retire seu talit catan imediatamente! Retire-o! Abandone essa sua tola observância!”
“Se me obrigarem” - respondeu o Rebe - “a retirar meu talit catan, negar-me-ei a responder suas perguntas. E se vocês propõem consegui-lo através do uso dos punhos e das armas, eu os desafio a fazê-lo!”
Esta resposta aplacou as tentativas nesse sentido.
Naquele instante entrou Nachmanson e, ao ver o Rebe, rompeu em estrondosas gargalhadas e disse: “Lulov, sabe que meus pais não podiam ter filhos e somente depois que meu pai foi visitar o Rebe de Lubavitch, nasceu-lhes um filho? Esse filho sou eu, de pé na (à) sua frente.”
As paredes estremeceram com as risadas ruidosas e vulgares dos funcionários ao ouvirem a anedota.
Nesse momento, o Rebe perguntou se podia relatar uma história e, sem sequer aguardar permissão para fazê-lo, começou: “Certa vez um estudioso ateu foi ver o Tsêmach Tsêdec…”
Nachmanson interrompeu para dizer: “Provavelmente uma pessoa como eu, que não crê.”
“Não” - respondeu o Rebe “tratava-se de uma pessoa versada em conhecimentos judaicos enquanto você é um simples ignorante…”
“…Esta pessoa” - prosseguiu o Rebe sua narração - “perguntou por que na Meguilá de Ester, a palavra ‘yehudim’ (judeus) escreve-se com a letra yud repetida, tratando-se do recado que Mordechai enviou à Ester através de um mensageiro, no qual lhe informava acerca do terrível decreto sobre a sorte dos judeus do império persa, enquanto no versículo posterior, no qual se descreve a salvação dos judeus (“Para os judeus havia luz…”), a palavra yehudim se escreve somente com uma letra yud.
“O Tsêmach Tsêdec respondeu: ‘A repetição da letra yud corresponde às duas tendências: a virtuosa e a má. Tanto nas dependências más como nas virtuosas existem as dez (valor numérico da letra yud) qualidades da alma. Há dois tipos de judeus: os judeus nos quais predomina a tendência virtuosa e os que por certo tempo sucumbiram à influência da tendência negativa. O decreto de Haman não estava dirigido exclusivamente contra os judeus tementes a D-us, os que seguiam a tendência virtuosa; Haman desejava destruir também os que não eram religiosos, os quais agiram de acordo com a má tendência. Eles também estavam incluídos em seu decreto.’
“O visitante então perguntou: ‘Num versículo posterior (“Os judeus de Shushan reuniram-se”) voltamos a encontrar a ortografia com a letra yud repetida.’ O Tsêmach Tsêdec replicou: ‘Isso é porque os judeus de Shushan, ao encontrarem-se no centro de tudo o que ocorria, perceberam o milagre de Purim e sentiram-se profundamente comovidos; tanto, que mesmo os judeus não praticantes retornaram ao caminho da Torá e do judaísmo.’ O Tsêmach Tsêdec concluiu do seguinte modo: ‘O mesmo ocorrerá com você; quando sofrer de uma grande enfermidade, você também mudará.’ Sucedeu que pouco depois este homem contraiu uma febre que durou três meses. Abalado por seu sofrimento, o descrente se arrependeu e retornou ao judaísmo.”
O Rebe concluiu sua narrativa e acrescentou: “Quando você sofrer, também mudará.”
O interrogatório terminou muito tarde naquela noite; ao finalizar, Lulov, que era gago, exclamou raivosamente:
“M-m-mas dentro de 24 horas você será fuzilado.” Não se tratava de uma mera ameaça; a situação realmente era muito grave. Um destacado comunista que participou de uma tentativa de libertar o Rebe fez uma observação na sexta-feira daquela semana, a uma das filhas do Rebe: “Reze para que seu pai continue vivo.”
O Rebe regressou do interrogatório angustiado, com uma dor agonizante Continuou com sua greve de fome até sexta-feira à tarde, quando lhe foram devolvidos os tefilin e seus livros sagrados.
Um membro judeu da G.P.U. os trouxe. O Rebe lhe disse: “Não comerei a comida da prisão, a não ser unicamente aquela que me seja trazida de casa. Quanto à água, mais tarde a tomarei, mesmo sendo a da prisão, mas unicamente sob a condição de que seja aquecida em uma vasilha empregada somente para água.”
O funcionário da G.P.U. respondeu enfurecido: “Você se propõe a dar uma supervisão de cashrut na cozinha da prisão?”
O Rebe respondeu: “Não sou um rabino encarregado de supervisão de cashrut!” - e imediatamente colocou os tefilin.
A primeira refeição de Shabat do Rebe na prisão consistiu de uma chalá e água fria da torneira.
Recitou o kidush e pronunciou a bênção do pão em voz alta, entoando uma melodia especial de Chabad.
A mudança de atitude por parte do vigia manifestou-se de várias formas. Por exemplo: não havia relógio na cela e, por isso, o Rebe não sabia, com exatidão, a hora em que devia pronunciar as orações noturnas (Arvit) que só podiam ser iniciadas, nos dias mais compridos do verão, aproximadamente às vinte e três horas. O Rebe pediu ao guarda que a essa hora batesse à porta, a fim de indicar que já chegara o momento da reza, no qual foi atendido prontamente.
Ao término do primeiro Shabat, o carcereiro deu ao Rebe dois fósforos para que pudesse pronunciar a bênção de havdalá - cerimônia que marca o encerramento do Shabat - diante da chama. Em seguida, o Rebe recitou a oração tradicional para o fim do Shabat: “Veyiten lechá…” (“Que D-us te conceda…”) com profundo júbilo interior.
Um enorme esforço mundial destinado a obter a libertação do Lubavitcher Rebe havia começado a produzir frutos. Tal atividade viu-se inicialmente coroada com certa dose de êxito, pelo fato de que a sentença de morte prevista foi reduzida a uma pena de dez anos de trabalhos forçados que no final também se reduziu a um decreto de exílio por três anos na distante cidade de Costroma.
O Rebe assumiu a postura firme de não se deixar intimidar por seus captores. Certa vez, ao negar-se a responder uma pergunta, foi submetido ao isolamento penal por 24 horas. O chão do calabouço estava repleto de lama. Pelo chão e paredes deslizavam ratazanas e outros parasitas, vermes e insetos imundos. Contudo, em absoluto não modificou sua determinação. Não cedeu ao temor, nem considerou que seus algozes exerciam qualquer poder sobre ele. Com o passar do tempo, começou a ocorrer uma sutil mudança. O primeiro indício foi a melhora das condições na própria prisão.
Pouco depois o guarda da cela lhe trouxe três chalot - pães sabáticos inteiros para as refeições do Shabat - enviados especialmente de sua casa.
Tratava-se de um fato pouco comum. Em circunstâncias normais, o pão ou qualquer outro alimento que se trazia para um prisioneiro era cortado em pequenos pedaços como medida de precaução contra a introdução na prisão de objetos proibidos. Entretanto, o Rebe recebeu as chalot inteiras; este fato representava uma política de condescendência para com ele. A partir desse momento, o guarda mostrou uma atitude muito mais reverente.
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